E reacende debate sobre políticas públicas e ludopatia no Brasil.
O avanço das plataformas de apostas esportivas, as chamadas bets, no Brasil revela um retrato preocupante da relação entre economia digital, vulnerabilidade social e ausência de políticas públicas eficazes. O que antes parecia apenas uma nova forma de entretenimento hoje se tornou um fenômeno de proporções nacionais, movendo bilhões de reais e afetando diretamente a vida de milhões de brasileiros.
Dados recentes indicam que mais de R$ 5 bilhões provenientes de benefícios sociais, como o Bolsa Família, foram utilizados em jogos de azar. Essa informação não deveria apenas gerar espanto, mas acender um alerta sobre o uso indevido de recursos públicos destinados à sobrevivência de famílias em situação de vulnerabilidade.
A tributação do setor é outro ponto de desequilíbrio. Atualmente, os ganhos com apostas são tributados em 13%, percentual inferior ao cobrado sobre ganhos de capital produtivo, que chegam a 18%. Essa discrepância revela não apenas uma injustiça fiscal, mas também uma inversão de valores econômicos e morais. Estamos tributando menos um setor que alimenta o vício, o endividamento e a desestruturação familiar do que aquele que estimula o investimento produtivo e o crescimento econômico.
É por isso que defendo que a tributação das bets siga a lógica do imposto seletivo, aplicado a produtos e serviços que geram impactos negativos à sociedade, como bebidas alcoólicas e cigarros. Trata-se de um mecanismo não apenas arrecadatório, mas educativo e de controle social. Parte significativa dessa arrecadação deveria ser destinada a programas de prevenção, tratamento e reabilitação de jogadores compulsivos, além de ações que impeçam o uso de benefícios sociais em plataformas de apostas.
A ludopatia, transtorno caracterizado pela compulsão por jogos, já é reconhecida como um problema de saúde pública em diversos países. No Brasil, no entanto, o enfrentamento ainda é tímido. A ausência de políticas específicas, somada à explosão das apostas online, cria o cenário perfeito para o agravamento desse quadro.
Estamos diante de um dilema ético e social: permitir que o Estado continue arrecadando sobre um vício sem devolver à sociedade mecanismos de proteção é, no mínimo, irresponsável. O debate sobre a regulação das apostas esportivas precisa ir além da lógica econômica — deve se transformar em uma política pública sólida, que proteja populações vulneráveis, regule o setor com responsabilidade e reduza os impactos da ludopatia.
O momento é decisivo. Ignorar o problema é perpetuar uma distorção que fere o princípio da justiça fiscal e aprofunda desigualdades sociais. O Brasil precisa tratar o jogo com a seriedade que ele exige — não como mera fonte de receita, mas como um desafio de saúde pública e responsabilidade social.
• Por: Lia Noleto de Queiroz, advogada, consultora jurídica com foco em processo legislativo e construção de políticas públicas, e mestre em políticas públicas e governo pela Fundação Getúlio Vargas