A reconfiguração das cadeias globais – intensificada por medidas como as tarifas impostas por Trump ao Brasil – escancara a fragilidade de uma pauta exportadora centrada em commodities. Mas também revela uma oportunidade clara: posicionar o Brasil como fornecedor de soluções digitais, e não apenas de matéria-prima.
Com o mundo tensionado por guerras comerciais, cadeias físicas sob pressão e juros altos freando o capital, o Brasil tem uma chance única de virar o jogo: exportar inteligência em vez de insumo. E esse movimento já começou – cabe a nós ampliá-lo com produto, estratégia e ambição. Essa oportunidade não é teórica – ela já está sustentada por dados concretos, como:
O setor de cibersegurança brasileiro projeta chegar a US$ 5,46 bilhões até 2029, segundo o Departamento de Comércio dos EUA.
A infraestrutura digital já cobre mais de 86% da população, com um mercado de telecomunicações estimado em US$ 32 bilhões, projetado para US$ 43 bilhões até 2029.
O plano nacional de IA pode gerar até R$ 2 trilhões em investimento no país na próxima década.
Segundo a OCDE, 46% das exportações brasileiras de serviços digitais já têm os EUA como destino principal, o que demonstra que a inserção internacional já começou – mas ainda é concentrada em serviços sob demanda, e não em produtos escaláveis.
O diferencial brasileiro está justamente na capacidade de desenvolver soluções sofisticadas em ambientes adversos. Por operarmos em contextos de alta regulação, volatilidade e ineficiência estrutural, aprendemos a resolver problemas reais com profundidade técnica. E quando exportamos isso para mercados mais previsíveis, ganhamos vantagem. Além disso, há uma mudança clara na lógica global de fornecimento: países como os EUA estão redesenhando suas cadeias com foco em nearshoring e friendshoring – favorecendo fornecedores próximos e politicamente alinhados. O Brasil, se quiser jogar esse jogo, precisa deixar claro que faz parte desse bloco.
O que falta não é talento, nem demanda – é narrativa e articulação estratégica. Ainda tratamos a exportação de tecnologia como exceção, quando ela deveria ser um eixo central da política econômica brasileira.
Reposicionar o Brasil como fornecedor de soluções digitais não é uma promessa vazia. É uma necessidade geopolítica, uma estratégia econômica e uma chance real de romper com a dependência histórica de commodities. A pergunta não é se a janela existe. A pergunta é: vamos atravessar por ela ou deixá-la fechar?
Em 2023, por exemplo, o Brasil exportou cerca de US$ 5,5 a 6 bilhões em serviços de tecnologia da informação e comunicação (TIC), segundo estimativas baseadas em dados do Banco Mundial. Mas esse número precisa ser lido com atenção: cerca de US$ 5,4 bilhões vieram de outsourcing tradicional – ou seja, profissionais PJtizados prestando serviços de desenvolvimento remoto para empresas estrangeiras. Um modelo baseado em hora-homem, não em produto. Isso mostra que a maior parte da exportação de tecnologia do Brasil ainda está ancorada em prestação de serviço sob demanda, e não em produtos digitais escaláveis como SaaS. E é justamente aí que mora a oportunidade.
O país conta hoje com mais de 13.500 startups ativas, incluindo mais de 380 empresas SaaS, que já atendem mais de 28 milhões de clientes globalmente e levantaram cerca de US$ 4,6 bilhões em capital até 2025 (Abstartups, GetLatka). Só o mercado nacional de SaaS movimentou US$ 9,2 bilhões em 2024, com projeção de quase dobrar até 2030.
Em resumo, a base existe: empresas escaláveis, regulamentação inovadora (como Pix, Open Finance e sandbox regulatório), apoio institucional via ApexBrasil e Start-Up Brasil, e um pool de talento técnico que já opera globalmente. O desafio agora é exportar tecnologia de verdade, e não apenas serviços sob demanda – estruturando startups como produtos globais desde o início. Para isso, é essencial fortalecer estruturas de apoio à exportação de propriedade intelectual, reduzir burocracias e promover o Brasil como polo estratégico de inovação digital.
A tecnologia tem potencial para se tornar o pilar de exportação mais resiliente do país – sem depender de logística física, frete ou tarifas aduaneiras. O que está em jogo agora é a escala e a soberania dessa transformação. Ou o Brasil assume protagonismo e estrutura a exportação de tecnologia como política de Estado – com coordenação, incentivos e posicionamento geopolítico claro – ou seguirá perdendo espaço para países menores, porém mais articulados.
Além disso, é pouco provável que os Estados Unidos revertam, no curto ou médio prazo, o novo baseline tarifário de 50% para o Brasil. A volta ao patamar anterior de 10% não deve ser encarada como uma certeza – e sim como um cenário improvável em um mundo cada vez mais fragmentado. Isso não significa que o governo brasileiro deva desistir de negociar tarifas sobre commodities, mas precisa enxergar esse novo contexto como um estímulo à guinada estratégica no perfil da nossa pauta exportadora.
Países como a Coreia do Sul mostram o que é possível quando essa guinada é feita com visão de longo prazo. Em poucas décadas, o país deixou de ser majoritariamente agrícola e passou a liderar setores como semicondutores, robótica, biotecnologia e serviços digitais. Hoje, exporta conhecimento, design e tecnologia – e seu PIB per capita saltou de menos de US$ 1.000 nos anos 70 para mais de US$ 35.000 em 2024.
A escolha que temos pela frente não é entre commodities e software. É entre manter um modelo que depende de isenção tarifária para sobreviver – ou construir um que exporta valor em qualquer cenário, com qualquer governo, em qualquer bloco.
O mundo está se redesenhando. Quem tiver clareza de posição e capacidade de entrega vai ocupar os novos espaços. O Brasil tem tudo para estar entre eles – se decidir jogar para ganhar.
• Por: Marcelo Martins, COO da Estratz.