O avanço da inteligência artificial no desenvolvimento de software tem provocado previsões tão otimistas quanto alarmistas. De um lado, há quem acredite que o programador será extinto por assistentes autônomos que escrevem código sob demanda. Do outro, vozes mais céticas alertam para limitações técnicas e contextuais que mantêm a IA restrita ao papel de coadjuvante. Em meio a esse ruído, perde-se muitas vezes uma distinção essencial: codar e desenvolver são coisas diferentes e a IA entende apenas uma delas.
Codar, no sentido estrito, é traduzir uma lógica para a linguagem da máquina. É uma atividade técnica, baseada em padrões conhecidos, que pode ser automatizada com relativa facilidade. Já desenvolver software envolve algo mais complexo, de entender problemas reais, lidar com ambiguidade, estruturar soluções, tomar decisões arquiteturais e colaborar com pessoas. A codificação é apenas a etapa visível de um processo intelectual muito mais amplo e é justamente esse processo que a IA ainda não alcança.
Modelos baseados em grandes transformadores, como os que sustentam o GitHub Copilot, Amazon CodeWhisperer, Cursor, Windsurf e Claude Coder, conseguem completar funções, sugerir algoritmos, gerar testes e até revisar trechos de código. Em tarefas repetitivas e estruturadas, o ganho de produtividade é significativo. Dados de uma pesquisa da Stack Overflow com mais de 10 mil desenvolvedores, publicada em 2023, mostram que 78% dos usuários regulares dessas ferramentas relataram conclusão mais rápida de tarefas, com aumento médio de produtividade de 29%. Os maiores ganhos foram observados em geração de testes (51% mais rápido) e refatoração (43% mais eficiente).
Modelos de linguagem, por mais sofisticados que sejam, operam com base em padrões estatísticos aprendidos a partir de grandes volumes de código. Eles não compreendem o domínio do problema, não inferem consequências de decisões técnicas no longo prazo, não questionam requisitos nem identificam inconsistências entre objetivos de negócio e a implementação sugerida. Para esses sistemas, um app bancário e um jogo de tabuleiro são apenas tokens em sequência. Um relatório técnico do IEEE Software documentou como equipes Scrum passaram a integrar ferramentas de IA em seus fluxos. Nos sprints analisados, o uso de IA reduziu em 15% a diferença entre o tempo estimado e o tempo real de desenvolvimento.
Há um abismo entre gerar código funcional e construir sistemas significativos. Projetos reais não partem de instruções claras e completas. Eles evoluem a partir de requisitos ambíguos, contextos específicos, trade-offs difíceis e negociações contínuas com múltiplas partes interessadas. Ferramentas que antes exigiam conhecimento técnico avançado hoje podem ser acessadas por iniciantes com apoio da IA, o que democratiza a construção de software e impõe aos especialistas um novo papel: o de liderar, revisar, integrar e manter coerência.
O resultado é o surgimento de uma nova figura, o desenvolvedor aumentado. Esse profissional não codifica tudo manualmente, mas também não terceiriza seu raciocínio. Ele delega à IA tarefas operacionais, mas mantém para si o julgamento, o contexto e a responsabilidade final. Ele domina o uso das ferramentas, mas entende que os sistemas que constroem valor não nascem do código em si, e sim da sua intenção, da sua estrutura e da sua aderência a problemas reais.
É esse entendimento que deve guiar a evolução da engenharia de software na era da inteligência artificial. Embora transforme o trabalho, a IA não o elimina, ela reduz o atrito operacional, mas ainda não resolve a ambiguidade nem constrói sentido. O código sempre foi apenas a superfície de um processo mais profundo, no qual o que realmente importa, hoje mais do que nunca, é a clareza de pensamento, a escuta ativa, o entendimento do negócio e a capacidade de criar soluções relevantes em contextos complexos. À medida que a codificação se automatiza, o desenvolvimento se torna mais humano, e é nesse paradoxo que reside o verdadeiro futuro da engenharia de software.
• Por: Fabio Seixas, CEO da Softo, com mais de 30 anos de experiência em tecnologia e negócios digitais, Fabio Seixas é empreendedor, mentor e especialista em desenvolvimento de software. Fundador e CEO da Softo, uma software house que introduziu o conceito de DevTeam as a Service, Fabio já criou e dirigiu oito empresas de internet e mentorou mais de 20 outras. Sua trajetória inclui expertise em modelos de negócios digitais, growth hacking, infraestrutura em nuvem, marketing e publicidade online.