Há exatamente cinquenta anos, quando Tubarão estreou nos cinemas, formaram-se filas que inauguraram o conceito de blockbuster e redefiniram a maneira como o público dos Estados Unidos, e depois do mundo, passou a consumir cultura popular. Não foi o animatrônico, no entanto, que impactou também hábitos costeiros, e sim a força de uma narrativa que transformou medo estatisticamente improvável em comportamento coletivo.
A lição permanece útil para decifrar a inteligência artificial de hoje. Temos algoritmos maduros, ancorados em matemática e ciência da computação há décadas, que ganharam escala num momento em que cadeias de suprimentos globais se reconfiguram, tensões geopolíticas testam resiliência energética e o planeta exige soluções de baixo carbono. Frente a esse emaranhado, reagimos com o mesmo espanto que manteve banhistas longe do mar. O problema nunca esteve no tubarão, e sim na incapacidade de diferenciar risco factível de ruído.
Planejamento de cenários existe para deslocar o debate do terreno emocional para o analítico. Começa com a identificação de vetores de mudança — potência de cálculo, fragmentação do comércio internacional, envelhecimento populacional, transição climática — e termina em narrativas plausíveis que oferecem ao decisor pontos de inflexão observáveis. Uma inteligência artificial treinada em tudo que já foi escrito sobre o passado só produzirá valor quando combinada a premissas coerentes sobre o futuro. Assim, o diferencial não está em gerar mais dados, mas em tensionar hipóteses e validá-las em velocidade suficiente para antecipar crises ou capturar oportunidades.
Nesse exercício, o básico permanece inegociável. Em finanças, custo de oportunidade, diversificação e análise de risco continuam a sustentar carteiras, apesar da sofisticação das planilhas que remodelam-se a cada milissegundo. Na educação, trilhas adaptativas prometem personalização extrema, porém fracassam quando o aluno não dispõe de estruturas cognitivas para ancorar novos conceitos. Na gestão, dashboards coloridos perdem significado se o executivo desconhece causalidades elementares entre fluxo de caixa, vantagem competitiva e comportamento do consumidor.
Curadoria estratégica, portanto, atua como seguro de longo prazo. Ela exige propósito explícito, fontes confiáveis e conexão disciplinada entre fatos e hipóteses. Sem propósito, abundância vira dispersão; sem filtros, contágio informacional compromete diagnóstico; sem hipótese, velocidade converge a lugar nenhum. Foi esse tripé que permitiu às empresas minimamente preparadas saírem da pandemia com liquidez e posicionamento, enquanto outras, fascinadas por indicadores instantâneos, descobriram tarde que não sabiam o que medir.
A tentação de delegar raciocínio a máquinas cresce à medida que o custo de processamento cai. No entanto, a velocidade só gera vantagem se a direção for clara. A história de Tubarão continua a lembrar que narrativas moldam a percepção de risco, e percepção de risco molda investimento, inovação, diplomacia e até a formação de opinião pública. O antídoto não está em desligar a inteligência artificial, mas em adensar raízes teóricas, éticas e analíticas, capazes de enfrentar a próxima onda de incerteza.
Estratégia, afinal, não se resume a prever o futuro; consiste em construir capacidade de sobrevivência e de reinvenção diante de múltiplos futuros possíveis. Quem nutre fundamentos sólidos, pratica cenários com regularidade, exerce curadoria com disciplina, e tem coragem para tomar decisões, atravessa marés agitadas com casco íntegro. O resto, como Spielberg bem demonstrou, é bilheteria: impressiona na estreia, some nos créditos.
• Por: Luciana Zanini, Investidora, Conselheira e CFO do Inhotim.