Em 6 de julho de 2025, os países do BRICS divulgaram a Declaração do Rio de Janeiro, centrada na cooperação do Sul Global e no futuro da governança internacional. Entre os temas abordados, um parágrafo específico chamou a atenção: a posição conjunta sobre Inteligência Artificial (IA), formalizada no item 16 do documento.
A declaração reconhece que a IA representa uma “oportunidade histórica para o desenvolvimento”, mas rapidamente transfere o foco para a necessidade de governança global, mitigação de riscos e respeito à soberania nacional. A proposta culmina na criação da Declaração dos Líderes do BRICS sobre a Governança Global da IA, a ser divulgada posteriormente.
Embora bem-intencionada, a linguagem do texto revela uma questão estratégica importante: a IA é tratada mais como ameaça a ser contida, do que como uma força a ser mobilizada. Em outras palavras, os países do Sul Global parecem estar priorizando o controle, antes da construção, a proteção, antes da inovação.
Alguns aceleram, outros freiam — Nos Estados Unidos, a IA é considerada um ativo nacional estratégico. Desde 2020, planos como o American AI Initiative alinham investimentos em pesquisa, infraestrutura e capacitação com metas econômicas e militares. O foco está em resultados: produtividade, eficiência, novos mercados e domínio tecnológico.
A China, membro central do BRICS e referência global em IA, segue caminho semelhante — mas ainda mais assertivo. Desde 2017, com o plano “Next Generation AI Development Plan”, o país articula política industrial, ciência aplicada e geopolítica digital. A IA é usada para transformar a manufatura, a saúde, a educação e a segurança nacional — tudo sob uma abordagem desenvolvimentista de longo prazo, com forte intervenção estatal, metas concretas e execução em larga escala.
O paradoxo: a China no BRICS — Surge aqui um paradoxo desta Declaração do BRICS: uma das maiores potências em IA do mundo — a própria China — não segue, na prática, o espírito do item 16. Ao contrário, sua estratégia nacional é voltada à liderança, à autonomia tecnológica e à exportação de soluções baseadas em IA. Para a China, a IA é uma ferramenta de poder, não apenas de um debate ético ou institucional.
Faz sentido uma diretriz comum que não representa a prática de seu membro mais avançado? Ou será que o item 16 é, no fundo, uma construção política e simbólica, sem capacidade real de mobilização?
A retórica passiva do desenvolvimento no Sul global — Enquanto a China e os EUA operam com metas, investimentos e marcos de execução, a maior parte do Sul Global segue no campo do discurso. Na Declaração, termos como “prosperidade compartilhada”, “crescimento inclusivo” e “capacitação dos países em desenvolvimento” aparecem de forma aspiracional, mas sem planos estruturados, incentivos orçamentários ou prazos definidos.
Por outro lado, os elementos de controle — “governança global”, “marcos regulatórios”, “risco”, “ONU”, “soberania” — surgem com densidade institucional. Isso evidencia uma assimetria de ação, na qual o receio de dependência tecnológica suplanta o impulso de inovação. O resultado é uma regulação robusta sem estratégia de criação.
O custo de não desenvolver: mais dependência, menos influência — A IA avança em ritmo exponencial, já redefine fluxos de trabalho, cadeias produtivas, relações de consumo e decisões de Estado. Quem lidera essa transformação, constrói o futuro — quem hesita, será governado por ele.
Governar sem desenvolver é aceitar um papel periférico. Proteger dados sem gerar valor com eles é como guardar diamantes brutos sem nunca lapidá-los. O Sul Global corre o risco de repetir a história da Revolução Industrial e da Era Digital: consumir o que não produz e depender do que não controla.
Soberania real exige desenvolvimento — A soberania tecnológica não é apenas controlar o que entra, mas decidir o que se produz, como se utiliza e para quem se exporta. Isso exige:
. Infraestrutura computacional acessível,
. Ambientes regulatórios adaptativos,
. Capacitação de talentos locais,
. E sobretudo, vontade política de agir com ambição.
O Brasil, por exemplo, tem capital humano, universidades de excelência, criatividade e potencial produtivo, mas carece de uma estratégia nacional de IA com metas mensuráveis. A América Latina como um todo precisa ir além das declarações, é preciso investir, testar, escalar e competir.
Governar é preciso. Desenvolver, mais ainda.
A Declaração do BRICS acerta ao defender a soberania e os direitos dos países em desenvolvimento. Mas essa proteção não pode gerar inércia.
O Sul Global precisa ser mais do que espectador, precisa atuar como protagonista, com projetos, soluções e liderança própria em IA. O futuro digital não será moldado por declarações, mas por quem fizer mais, errar rápido e aprender melhor.
A janela está aberta, mas não por muito tempo.
• Por: Ricardo Villaça, Caio, diretor de Inteligência Artificial da DRL AI.