Os Decretos 12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025 alteraram seguidamente o Regulamento do IOF, e, dentre outras medidas, ampliaram o conceito de operação de crédito, incluindo a previsão expressa de que operações de antecipação de pagamentos a fornecedores (“risco sacado”) são consideradas operações de crédito para fins de incidência do IOF. A medida reacendeu importantes discussões sobre os limites constitucionais da tributação, pois institui uma nova hipótese de incidência de IOF por meio de ato infralegal.
Demonstrando a gravidade e importância do assunto para o mercado, menos de um mês após publicação dos decretos, o Congresso Nacional reagiu com celeridade e aprovou o Decreto Legislativo nº 176/2025, que sustou os efeitos dos decretos presidenciais. O governo federal, por sua vez, está contestando essa decisão no Supremo Tribunal Federal (STF), alegando a inconstitucionalidade do decreto legislativo e a validade dos seus próprios atos normativos, resultando na judicialização do tema. Quatro ações tramitam atualmente no STF em relação a esse tema: ADI 7827, ADI 7839, ADC 96 e ADC 97.
Do ponto de vista jurídico, é essencial entender os fundamentos que demonstram a inconstitucionalidade da incidência do IOF sobre o risco sacado, para além do embate político. Embora apresentada como um mero ajuste regulatório, a instituição do IOF sobre as operações de risco sacado, representa uma nova hipótese de incidência do IOF, o que configura violação à legalidade tributária.
Na operação de risco sacado, uma Instituição Financeira antecipa ao fornecedor (Cedente) o pagamento de um recebível (direito creditório) devido pelo Sacado (comprador), por meio da cessão sem coobrigação do direito creditório do fornecedor para Instituição Financeira. O fornecedor recebe à vista da instituição financeira e não permanece coobrigado pelo pagamento da obrigação, ou seja, não há direito de regresso contra o cedente, conforme previsto no artigo 296 do Código Civil. A Instituição Financeira assume o risco de inadimplemento do sacado, que, por sua vez, deverá realizar o pagamento no prazo original da operação mercantil.
Essa estrutura é amplamente utilizada por pequenas e médias empresas para acesso a capital de giro e eficiência na gestão do fluxo de caixa, sobretudo no setor varejista e na cadeia de suprimentos de grandes companhias.
No risco sacado não há qualquer obrigação futura por parte do cedente e tampouco a intenção de conceder empréstimo ou mútuo, o que afasta a natureza de operação de crédito. O que se observa é a alienação de um ativo, um direito creditório, trata-se, portanto, de cessão definitiva de recebíveis sem coobrigação.
Dessa forma, a tributação das operações de risco sacado pelo IOF significa a inclusão de uma nova hipótese de incidência tributária, sem o devido respaldo legal. Nos termos do artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, é vedado à União exigir ou aumentar tributos sem que exista lei em sentido estrito que o estabeleça, o que configura a inconstitucionalidade formal dos Decretos nº 12.499 e 12.466 ao tributar as operações de IOF.
Em relação a característica extrafiscal do IOF, conforme previsto no artigo 153, §1º da Constituição Federal, o Poder Executivo poderá majorar as alíquotas do IOF, desde que respeitada a finalidade extrafiscal-regulatória do imposto, outro ponto contraditório nos Decretos. Contudo, ainda que presente a finalidade regulatória, não é permitida a criação de novas hipóteses de incidência tributária, como ocorreu no caso do risco sacado.
Nesse sentido, a jurisprudência do STF é pacífica ao reconhecer que a legalidade tributária é um direito fundamental dos contribuintes (STF – AgR RE: 959274 SC, relator.: min Rosa Weber, Data de Julgamento: 29/08/2017).
Além da inconstitucionalidade formal, verifica-se também inconstitucionalidade material, uma vez as operações de risco sacado não configuram operações de crédito, previstas no artigo 153, inciso V, da Constituição.
O risco sacado, conforme explicado acima, não se caracteriza como operação de crédito pois não há entrega presente de capital com promessa de contraprestação futura, o que descaracteriza o elemento essencial dessas operações. Conforme, esclarecido por Fábio Ulhoa Coelho, existe diferença essencial entre a cessão de recebíveis sem coobrigação e o desconto bancário, no qual o cliente “garante ao banco o pagamento do crédito transferido. Se o devedor com que o descontário entabulou a relação jurídica originária do crédito não honra a obrigação no vencimento, o banco pode cobrá-la do seu cliente, em regresso.”
Essa interpretação é amparada por sucessivas soluções de consulta da Receita Federal, como a SC SRRF06 nº 6047/2015 e a COSIT nº 9/2016, que estabelecem de forma clara a distinção entre as operações e não incidência do IOF: “Não incide o IOF nas operações de cessão, sem coobrigação, de direitos creditórios decorrentes de vendas a prazo, quando o cessionário for instituição financeira. Todavia, quando do estabelecimento de cláusula de coobrigação do cedente (ou seja, em operações de cessão de direitos creditórios a instituição financeira com coobrigação), incide o IOF/Crédito(…)” (Solução de Consulta nº 6.047 – SRRF06/Disit).
A equiparação do risco sacado a uma operação de crédito constitui uma construção artificial, dissociada da realidade prática da natureza dessas operações e desprovida de respaldo legal. Assim, a tributação dessas operações resulta em violação formal à constituição, por ter sido instituída via decreto, e também em inconstitucionalidade material.
Portanto, ainda que se alcance algum consenso político ou decisão favorável ao Executivo no STF, a discussão jurídica está longe de ser encerrada. A incidência do IOF sobre risco sacado apresenta inconstitucionalidades formais e materiais que comprometem a segurança jurídica e oneram de forma desproporcional pequenas e médias empresas que dependem dessas operações para financiar sua atividade econômica.
Diante deste cenário, é imprescindível que eventuais mudanças tributárias sejam feitas com estrita observância ao texto constitucional, assegurando a legalidade, previsibilidade e estabilidade do sistema jurídico-tributário brasileiro.
• Por: Luiza Campolina, é especialista Jurídica e Sócia da Monkey, o maior marketplace de soluções financeiras da América Latina. Formada em Direito na Universidade Federal Fluminense e com LLM em direito empresarial pela Ibmec.