O déficit habitacional brasileiro permanece como um dos principais entraves ao desenvolvimento urbano e à promoção da justiça social. De acordo com a PNAD Contínua 2022, mais de 6,2 milhões de domicílios apresentam algum tipo de inadequação. Por décadas, o acesso à moradia foi tratado quase exclusivamente sob a ótica da propriedade formal, consolidando uma abordagem binária e limitada diante de um problema estrutural e multifacetado.
Levantamento da Fundação João Pinheiro, principal referência para políticas públicas habitacionais no país, revela que o déficit se manifesta principalmente sob três formas: habitação precária, coabitação involuntária e ônus excessivo com aluguel urbano. Esses indicadores evidenciam a natureza qualitativa do déficit e sua correlação direta com desigualdades de gênero, raça, renda e território. Mais de 62% dos domicílios em situação de déficit são chefiados por mulheres, em sua maioria negras ou pardas. A maior parte dessas famílias possui renda de até dois salários mínimos, e mais da metade compromete mais de 30% desse valor com aluguel, caracterizando o ônus excessivo e revelando o descompasso entre a oferta formal de habitação e a capacidade de pagamento da população.
A interseccionalidade, portanto, muito além de uma perspectiva teórica, deveria ser um imperativo na formulação de políticas públicas.
Apesar da evolução do debate, a resposta institucional ao déficit tem se mantido, desde 1964, centrada na lógica da produção habitacional subsidiada e do acesso ao crédito, por meio do Sistema Financeiro da Habitação. Essa estratégia foi ampliada com o Programa Minha Casa Minha Vida, que desde 2009 viabilizou mais de 7,5 milhões de unidades habitacionais e impulsionou significativamente a cadeia produtiva da construção civil. No entanto, os dados mais recentes, somados à diversidade territorial do país, evidenciam os limites de um modelo único, voltado quase exclusivamente à propriedade formal.
Nos últimos anos, observa-se o surgimento de iniciativas mais sofisticadas, baseadas na descentralização da política habitacional. Estados e municípios vêm estruturando programas próprios, ampliando seu protagonismo em políticas federais ou estabelecendo parcerias com organismos multilaterais como o BID e o Banco Mundial. Em paralelo, avançam soluções híbridas por meio de parcerias público privadas, que já se mostraram eficazes em áreas como saneamento e iluminação pública, e que agora começam a ser exploradas também no campo habitacional.
Nesse novo cenário, a tecnologia emerge como elo estruturante entre atores, sistemas e camadas do problema. O ecossistema de govtechs, proptechs e construtechs tem ampliado sua presença, oferecendo soluções que vão além da digitalização de processos administrativos. Ferramentas voltadas à modelagem territorial inteligente, automatização de cadastros, análises de elegibilidade, gerenciamento de obras, rastreabilidade financeira e monitoramento físico em tempo real têm elevado o padrão de gestão tanto no setor público quanto no privado.
Ganha relevância também o desenvolvimento de modelos de análise de risco de crédito mais inclusivos, capazes de incorporar a informalidade da renda e superar barreiras cadastrais que tradicionalmente excluem grande parte da população em situação de déficit. Essas soluções viabilizam o acesso a fianças locatícias mais acessíveis e abrem espaço para o avanço de políticas de locação social, especialmente como alternativa ao aluguel informal e à informalidade contratual que marca grande parte da realidade urbana brasileira.
A presença crescente dessas tecnologias sinaliza um processo de transição. A inovação deixa de ser um recurso pontual e passa a ocupar papel central na articulação de políticas habitacionais mais responsivas, intersetoriais e territorializadas.
Para os próximos anos, é possível projetar avanços graduais, ainda que assimétricos. Municípios com maior capacidade institucional e técnica tendem a liderar a adoção de soluções digitais em áreas como cadastro unificado da demanda, integração com políticas sociais, gestão de subsídios e monitoramento de contratos em tempo real.
Essas transformações apontam para um novo ciclo. A tecnologia, nesse contexto, não é mais um diferencial. É um pré-requisito, um fio condutor. Em um ambiente de restrição fiscal, pressões sociais e complexidade regulatória, a capacidade de integrar soluções técnicas, inovação financeira e inteligência social será determinante para enfrentar, com escala e equidade, os desafios da habitação no Brasil.
• Por: Isadora Moraes, Diretora de Novos Negocios Alpop.