Recentemente o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 174, de 2025, aprovou o texto do Tratado de Budapeste sobre o Reconhecimento Internacional do Depósito de Microrganismos para Efeitos do Procedimento em Matéria de Patentes, assinado em Budapeste, em 28 de abril de 1977.
Os próximos passos são o depósito do instrumento de ratificação ou adesão ao tratado junto ao Diretor-Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, a promulgação e publicação do Tratado no Diário Oficial por meio de um decreto presidencial. O Tratado entra em vigor três meses após a data do depósito do instrumento de ratificação, a menos que uma data posterior tenha sido indicada no documento de ratificação.
O Tratado de Budapeste dispõe sobre um tópico específico no processo internacional de patentes: os microrganismos. Visa harmonizar e simplificar os requisitos para o depósito de microrganismos em procedimentos de patentes.
Importante observar que o Tratado de Budapeste trata do depósito de material biológico, não dos critérios de patenteabilidade para esse material. O Tratado não substituirá a legislação nacional relacionada a patentes.
Os critérios de patenteabilidade no Brasil seguem a estrutura normativa baseada no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS (sigla em inglês para Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), que é o acordo multilateral abrangente sobre propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio – OMC.
O Acordo TRIPS da OMC em seu artigo 27, que trata da matéria patenteável, estabelece que as patentes estarão disponíveis para quaisquer invenções, sejam produtos ou processos, em todos os campos da tecnologia, desde que: sejam novas, envolvam uma etapa inventiva e sejam capazes de aplicação industrial (grifei). O Acordo exige que a patente divulgue a invenção de maneira suficientemente clara e completa para que a invenção possa ser realizada por um especialista na área. E permite que os Membros excluam da patenteabilidade as plantas e os animais, exceto microrganismos, e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, exceto processos não biológicos e microbiológicos.
Com relação às plantas e animais, o Brasil, seguindo as regras do acordo, excluiu de sua legislação doméstica a possibilidade de patente. Entretanto, seguindo também as regras do Acordo, adotou um sistema para a proteção de variedades vegetais por meio da adesão à União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas – UPOV.
Com relação aos microrganismos, o legislador brasileiro considerou uma combinação dos comandos do Acordo TRIPS para definir que o Brasil não permite a patente de um microrganismo natural, mas permite a patente de um microrganismo geneticamente modificado. Isso decorre do fato de que um microrganismo natural não envolve uma etapa inventiva que é essencial para a patenteabilidade, ele é um achado, já estava pronto na natureza, e, portanto, não pode ser objeto de patente. Já os microrganismos transgênicos contêm atividade inventiva em sua construção e sua patenteabilidade é, portanto, permitida.
No Brasil, a regra é estabelecida pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, estabelece em seu artigo 18, inciso III, que não são patenteáveis o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – e que não sejam meras descobertas. (grifei)
Importante ressaltar o acerto do legislador brasileiro em 1996 ao considerar a ausência da etapa inventiva como um critério impeditivo da patenteabilidade.
Em outubro de 2012 ocorreu um julgamento importantíssimo na Suprema Corte dos Estados Unidos da América – no caso Associação para Patologia Molecular v. Myriad Genetics. Neste caso, se discutiu a validade das patentes de dois genes humanos associados ao câncer de mama e ovário, BRCA1 e BRCA2.
Dois grandes cientistas atuaram no processo como amicus curiae contra a validade do patenteamento de genes naturais:
1 – James D. Watson, codescobridor da estrutura de dupla hélice do ácido desoxirribonucleico (DNA), sustentou de forma brilhante que os genes humanos são um produto da natureza e, portanto, as informações codificadas por esses genes não podem ser monopolizadas por nenhuma entidade.
2 – Eric S. Lander, um dos principais líderes do Projeto Genoma Humano (HGP), sustentou com muita propriedade que fragmentos de DNA humano são não elegíveis para patente, são rotineiramente encontrados na natureza e o processo de purificação ou síntese é rotineiro.
Outra preocupação importante manifestada pelos cientistas acima mencionados é a de que monopolizar esses materiais por meio da concessão de direitos de patente pode impedir a inovação em vez de promovê-la.
Ao final a Suprema Corte dos Estados Unidos da América decidiu que as patentes concedidas aos dois genes humanos eram inconstitucionais e inválidas.
A Suprema Corte sustentou que os genes e as informações que eles codificam não são patenteáveis simplesmente porque foram isolados do material genético circundante. Já o DNA complementar sintetizado (cDNA) é elegível para patente, exceto nos casos em que uma fita curta de cDNA seja indistinguível do DNA natural. A base legal da decisão foi o § 101 da Lei de Patentes dos EUA, que trata das invenções patenteáveis.
A decisão acima é clara, o Tribunal concluiu que o DNA é considerado um produto natural e, portanto, não pode ser patenteado, e que o isolamento não constituí um ato de invenção.
Patentes criam monopólios, e não é razoável pretender exigir que as pessoas paguem royalties pelo monopólio de uma patente sobre um produto sem a característica da inventividade, derivado diretamente de um recurso natural disponível e de ocorrência sabidamente natural.
Assim, é importante reafirmar que mesmo se tornando parte do Tratado de Budapeste o Brasil poderá manter sua legislação doméstica que atualmente proíbe a patente de microrganismo natural.
É a Lei nº 9.279, de 1996, que continuará determinando qual microrganismo pode ser patenteado no Brasil.
Conforme foi observado acima, o Acordo TRIPS exige que a patente divulgue a invenção de maneira suficientemente clara e completa para que a invenção possa ser realizada por um especialista na área.
No caso da patente de um microrganismo, para satisfazer esse critério da divulgação é exigido que o microrganismo objeto da patente seja depositado, pois uma descrição por escrito do microrganismo certamente não seria suficiente. Já seu depósito em uma instituição autorizada permite que terceiros acessem o microrganismo, cumprindo a exigência de divulgação de maneira suficientemente clara e completa.
É neste ponto que o Tratado de Budapeste sobre o Reconhecimento Internacional do Depósito de Microrganismos para Efeitos do Procedimento em Matéria de Patentes é inserido e tem sua relevância.
Para evitar a necessidade de depósito em cada país em que se busca proteção, o Tratado prevê que o depósito de um microrganismo junto a qualquer Autoridade Depositária Internacional – AID (ou IDA sigla em inglês para international depositary authority) é suficiente para fins de procedimento de patente perante os institutos nacionais de patentes de todos os Estados contratantes.
Um único depósito de material biológico em qualquer IDA é reconhecido e válido para todos os Estados contratantes.
Uma IDA é uma instituição científica com uma coleção de culturas com capacidade para armazenar microrganismos. Ela adquire o status de IDA quando o Estado contratante em cujo território está localizada oferta as garantias ao Diretor-Geral da OMPI de que a referida instituição cumpre e continuará a cumprir as exigências do Tratado.
Um Estado contratante, mesmo não permitindo patentes para microrganismos naturais, deve aceitar um depósito em IDA localizada em seu território e reconhecer o depósito em outra IDA como cumprimento do requisito processual.
Aceitar um depósito em IDA localizada em seu território ou em IDA localizada em outro Estado contratante, não significa que um Estado contratante que não permita a patente de microrganismo natural, como é o caso do Brasil, será obrigado a conceder uma patente para um microrganismo natural dentro de suas próprias fronteiras. Também não significa que será obrigado a permitir a cobrança de royalties sobre um microrganismo natural dentro de seu território enquanto a legislação doméstica proibir o patenteamento de microrganismo natural.
Isso decorre do princípio da territorialidade, que restringe o alcance de uma patente às fronteiras do país que a emitiu.
O Tratado de Budapeste trata do depósito de material biológico, não dos critérios de patenteabilidade para esse material. Ele não substitui a legislação nacional relacionada a patentes, que como foi visto adotou uma lógica absolutamente lúcida ao ter como princípio a não patenteabilidade de algo encontrado na natureza.
• Por: Reginaldo Minaré, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e mestre em Direito pela Unimep, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), dissertando sobre Bioética e Direito à Vida. Foi consultor Jurídico da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio); diretor jurídico da Associação Nacional de Biossegurança (ANBio); consultor jurídico no Senado Federal, nos gabinetes da senadora Kátia Abreu e do senador Álvaro Dias; e diretor técnico adjunto da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Atualmente, é diretor-executivo da Associação Brasileira de Bioinsumos (ABBINS).