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04/07/2025

A legitimidade brasileira na geopolítica global

O Brasil ocupa uma posição geográfica central na América do Sul e possui peso demográfico e econômico nos cálculos regionais. Com mais de 210 milhões de habitantes e uma economia entre as dez maiores do mundo em paridade de poder de compra, o país é um polo de consumo relevante, com setores produtivos consolidados. Não se trata de uma economia industrialmente sofisticada em termos tecnológicos, mas com capacidade produtiva significativa em segmentos específicos. Empresas como a Petrobras e a Embraer projetam algum nível de competência técnica reconhecida internacionalmente, embora restrita a nichos bem definidos.

Essa posição estrutural dá ao Brasil certa relevância nas articulações globais, mas sua capacidade de transformação efetiva do cenário internacional é limitada. A diplomacia brasileira é marcada por uma tradição legalista, multilateral e mediadora, construída ao longo da Primeira República e consolidada nas décadas seguintes sob influência direta do modelo delineado por Rio Branco. Essa conduta, de moderação e pragmatismo, foi abandonada apenas de forma pontual, entre 2019 e 2022, quando a política externa foi instrumentalizada ideologicamente, o Itamaraty foi desorganizado internamente e o país passou a ser tratado por outros governos como uma exceção momentânea. A resposta internacional foi menos de enfrentamento direto e mais de contenção: ‘isolar sem romper’. Assim que o governo mudou, os principais organismos e fóruns voltaram a abrir espaço para a reintegração brasileira.

A atual política externa busca retomar a interlocução com múltiplos polos de poder. O Brasil mantém relação fluida com os Estados Unidos, com a União Europeia e com a China, e preserva o diálogo com a Rússia no âmbito do BRICS, ainda que com crescente desconforto nos bastidores. Essa equidistância estratégica não implica neutralidade moral, mas se justifica pela posição que o país busca ocupar — de mediador potencial em temas de conflito e de defensor de reformas institucionais nos organismos multilaterais. Há também ganhos comerciais óbvios nesse arranjo: o Brasil não está em condições de abrir mão de nenhum mercado relevante, seja por exportações de commodities, seja por acesso a insumos industriais e tecnológicos.

Essa inserção internacional, no entanto, não se converte automaticamente em influência geopolítica. O caso da Venezuela é revelador. Apesar de tentativas sucessivas de mediação, o Brasil não conseguiu liderar nenhuma articulação regional eficaz que tivesse impacto sobre o regime de Nicolás Maduro. A crise se arrastou, gerou efeitos diretos no território brasileiro — como o fluxo migratório desordenado — e expôs os limites da retórica diplomática quando não há instrumentos materiais, nem disposição regional para confrontos mais diretos. O mesmo pode ser dito da guerra entre Rússia e Ucrânia. A posição brasileira foi construída com base no cálculo — manter relações com Moscou, preservar margem de diálogo, evitar sanções unilaterais — mas isso não impediu que o país sofresse impactos diretos, especialmente no abastecimento de fertilizantes e no encarecimento do trigo. Houve resposta interna: ampliação da área plantada, redirecionamento de acordos comerciais, pressão sobre o custo de vida. Não foi uma crise existencial, mas deixou claro que o Brasil, mesmo distante dos teatros de guerra, não é imune às externalidades do conflito.

As guerras não são o único vetor externo que pressiona a política brasileira. A agenda climática internacional impõe cada vez mais condicionantes ao investimento estrangeiro, aos fluxos comerciais e ao financiamento. Nesse ponto, o Brasil tem ativos importantes. Sua matriz energética é predominantemente renovável, suas empresas — especialmente as de grande porte — têm se adaptado a exigências ambientais mais rígidas, e o país é depositário de ativos naturais de escala global. Isso permite ocupar algum espaço relevante nas negociações climáticas e reforça a imagem de potência ambiental. Ainda assim, a capacidade de articulação política internacional permanece condicionada pelas limitações internas.

A estrutura política nacional ainda preserva elementos patrimonialistas, sustentados por uma cultura institucional que favorece interesses corporativos e a manutenção de privilégios. Em muitos casos, parece haver uma desconexão entre a realidade enfrentada pela população e a atuação dos representantes políticos, cuja agenda está mais voltada à autopreservação do que à resolução de problemas estruturais. A classe média é altamente tributada, enquanto os setores de maior renda contam com mecanismos de isenção, brechas legais e proteção orçamentária que distorcem a progressividade fiscal e limitam o espaço para políticas redistributivas consistentes.

Ainda assim, o país acumulou avanços institucionais importantes. O Plano Real, por exemplo, estabilizou a economia e deu previsibilidade a um mercado que hoje serve de âncora regional num continente onde crises cambiais e desequilíbrios fiscais continuam sendo frequentes. Essa estabilidade monetária não resolve os desafios estruturais do país, mas representa um diferencial notório em relação a países vizinhos que ainda lutam com inflação crônica, desequilíbrio fiscal e volatilidade cambial.

Em um cenário internacional fragmentado e competitivo, o Brasil mantém valor como interlocutor confiável e parceiro estratégico. Sua capacidade de dialogar com potências de diferentes blocos, sua experiência em temas de desigualdade e clima, e sua tradição diplomática de mediação seguem sendo reconhecidas. A influência que exerce não depende apenas de sua geografia ou de sua economia, mas da coerência entre sua política interna e sua atuação internacional. Quando essa coerência existe, o Brasil ocupa seu espaço com legitimidade.

Por: Kaio Cezar de Melo, mestre pelo Insper e diretor executivo da Braver Corporation, consultoria estratégica especializada em comércio exterior e relações internacionais, com atuação na América Latina, Europa e Ásia. O executivo tem mais de 17 anos de experiência em comércio internacional, supply chain e sustentabilidade. Atuou em empresas como Avon (Natura &Co), GOL Linhas Aéreas, Mitsubishi e Fiesp.