A recente suspensão nacional dos processos que discutem a licitude da contratação de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas — a chamada pejotização —, determinada pelo ministro Gilmar Mendes, recoloca em pauta uma das questões mais sensíveis do Direito do Trabalho contemporâneo. A decisão ecoa uma crítica recorrente do STF à Justiça do Trabalho: a de que esta estaria sistematicamente descumprindo seus precedentes, como nas decisões fixadas na ADPF 324 e no Tema 725, que reconhecem a licitude da terceirização ampla, inclusive da atividade-fim.
O pano de fundo é, no entanto, mais denso. A Justiça do Trabalho tem, historicamente, atuado com base na primazia da realidade — princípio segundo o qual o que importa é a realidade fática da relação de trabalho, e não o rótulo contratual que as partes lhe conferem. Ao suspender todos os processos que discutem pejotização, com base em um caso específico de contrato de franquia, o STF corre o risco de transportar uma lógica própria de relações empresariais complexas para cenários de evidente precarização, como os das plataformas digitais.
Equiparar, por exemplo, a autonomia de um franqueado à de um entregador de aplicativo, cujo sustento depende exclusivamente da plataforma, é desconsiderar o abismo social e econômico entre essas realidades.
Além disso, ao adotar uma postura crítica à Justiça do Trabalho por “ignorar” seus precedentes, o STF flerta com uma possível restrição à autonomia da justiça especializada — o que se evidencia, por exemplo, na Rcl 66248, em que se alegou afronta à ADPF 324, mesmo com decisão transitada em julgado e forte amparo probatório. A tentativa de impor um entendimento uniforme e vinculante sobre a validade das contratações por PJ, independentemente das nuances fáticas, compromete a essência do Direito do Trabalho, cuja função é justamente proteger o elo mais fraco da relação jurídica.
Também chama atenção o histórico do ministro Gilmar Mendes em decisões que valorizam a liberdade contratual. A depender do desfecho no Tema 1389, a própria lógica da CLT pode ser esvaziada — e o Judiciário, neutralizado frente à fraude institucionalizada.
O impacto prático será profundo. É necessário reconhecer que, embora novas tecnologias exijam novas formas de organização do trabalho, o Brasil ainda não está pronto para acolher irrestritamente essas relações. A pejotização aqui ocorre num contexto em que o trabalhador depende exclusivamente dessas plataformas (iFood, Uber etc.) para sobreviver, sem qualquer forma de fiscalização efetiva do poder público.
A Corte precisa refletir se está realmente decidindo sobre a validade de contratos civis ou se está, na prática, redefinindo os contornos da proteção social no país. A Justiça do Trabalho, com todos os seus desafios, ainda é o último bastião contra formas sofisticadas de precarização. Segurança jurídica não pode ser confundida com blindagem contratual da fraude. Que o STF não transforme o debate sobre liberdade econômica em licença para explorar sob disfarce jurídico.
• Por: Ana Paula Godoi, advogada há mais de dez anos, bacharel em direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e especialista em direito do trabalho. Também atua na área do direito administrativo.